quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Mundo virtual

As crianças, a solidão e a fome Já por várias vezes aqui falei delas, das crianças. Hoje, aproveitando um mail recebido, deixo-vos uma história ficcionada, mas que ultrapassa, infelizmente, a realidade. É extensa, mas leiam-na até ao fim.

Entrei apressado e com muita fome no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada do movimento, porque queria aproveitar os poucos minutos que dispunha naquele dia, para comer e acertar alguns bugs de programação num sistema que estava a desenvolver, além de planear a minha viagem de férias, coisa que há tempos que não sei o que são.
Pedi um filete de salmão com alcaparras em manteiga, uma salada e um sumo de laranja, afinal de contas fome é fome, mas regime é regime não é? Abri o meu portátil e apanhei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:
- Senhor, não tem umas moedinhas?
- Não tenho, menino.
- Só uma moedinha para comprar um pão.
- Está bem, eu compro um.
Para variar, a minha caixa de entrada está cheia de e-mail. Fico distraído a ver poesias, as formatações lindas, rindo com as piadas malucas. Ah! Essa música leva-me até Londres e às boas lembranças de tempos áureos.
- Senhor, peça para colocar margarina e queijo.
Percebo nessa altura que o menino tinha ficado ali.
- Ok. Vou pedir, mas depois deixas-me trabalhar, estou muito ocupado, está
bem?
Chega a minha refeição e com ela o meu mau-estar. Faço o pedido do menino e o empregado pergunta-me se quero que mande o menino ir embora. O peso na consciência, impedem-me de o dizer. Digo que está tudo bem. Deixe-o ficar. Que traga o pão e mais uma refeição decente para ele. Então sentou-se à minha frente e perguntou:
- Senhor, o que está fazer?
- Estou a ler uns e-mail's.
- O que são e-mail's?
- São mensagens electrónicas mandadas por pessoas. É como se fosse uma carta, só que via Internet (sabia que ele não ia entender nada, mas pensei que seria uma forma de evitar uma quantidade de perguntas)
- Senhor, você tem Internet?
- Tenho sim, essencial no mundo de hoje.
- O que é Internet ?
- É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar, trabalhar, aprender. Tem de tudo no mundo virtual.
- E o que é virtual?
Resolvo dar uma explicação simplificada, sabendo com certeza que ele pouco
vai entender e deixar-me-ia almoçar, sem culpas.
- Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos tocar, apanhar,
pegar... é lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer. Criamos as nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que fosse.
- Que bom isso. Gostei!
- Menino, entendeste o significado da palavra virtual?
- Sim, também vivo nesse mundo virtual.
- Tens computador? - Exclamo eu!
- Não, mas o meu mundo também é vivido dessa maneira...virtual. A minha mãe fica todo dia fora, chega muito tarde, quase não a vejo, enquanto eu fico a cuidar do meu irmão pequeno que vive a chorar de fome e eu dou-lhe água para ele pensar que é sopa. A minha irmã mais velha sai todo dia também, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, porque ela volta sempre com o corpo. O meu pai está na cadeia há muito tempo, mas imagino sempre a nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos
brinquedos de natal e eu a estudar na escola para vir a ser um médico um dia.
Isto é virtual não é senhor?
Fechei o portátil, mas não fui a tempo de impedir que as lágrimas caíssem
sobre o teclado. Esperei que o menino acabasse de, literalmente, devorar o prato dele, paguei e dei-lhe o troco, que me retribuiu com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um: "Brigado senhor, você é muito simpático".
Ali, naquele instante, tive a maior prova do "virtualismo" insensato em que vivemos todos os dias, enquanto a realidade cruel nos rodeia de verdade e fazemos de conta que não percebemos
.

Não lhe peço que reenvie esta história a vinte amigos. Apenas lhe peço que a leia e reflicta sobre ela.

2 comentários:

mzmadeira disse...

Bem mais real do que parece, esta "estorinha", Jorge. E trouxe-me à memória uma que se passou, realmente, comigo e já nem me lembrava. A primeira, e única vez, que paguei uma refeição e me recusei a comê-la porque o empregado, primeiro, e depois o que me pareceu ser o dono, ou encarregado, terem tido a lata de me censurar por ter dado um papo-seco a um miúdo que apareceu junto da minha mesa. Eu nem como pão às refeições. Pedi a conta, recusando-me a ficar ali e, com os mesmos maus modos, tiveram a coragem de a tirar. E eu paguei. Sem ter tocado na comida. O curioso é que o pão me foi debitado o que apenas me deu o argumento que precisava para sair dali airosamente. «Paguei o pão, o pão era meu. As minhas coisas dou-as a quem eu quiser.»
Nunca mais lá voltei. Nem voltarei. Mesmo que tenha mudado de gerência - isto aconteceu já lá vão uns 15 anos -, aquela casa ficou "queimada" para mim.
Era ali, entre os Restauradores e o Coliseu... Nem quero saber se ainda é.

Avô Jorge disse...

Precisávamos de mais atitudes como a tua. Infelizmente, nest mundo do faz de conta, as crianças são as principais vítimas.
Vamos continuar a remar contra a maré.