Não era, na minha modesta opinião, um escritor/jornalista cujos textos fossem fáceis de ler e absorver.
Li as suas crónicas jornalísticas, durante algum tempo, apesar de ter sido num passado distante.
Mas este texto que agora me enviaram, após o seu recente falecimento, retrata de forma tão correcta a nossa sociedade, que não hesitei em disponibilizá-lo, apesar da sua dimensão.
Leio-o com atenção.
O verdadeiro olhar ao espelho.
A crença geral anterior era de que Santana Lopes não servia, bem
como Cavaco, Durão e Guterres. Agora dizemos que Sócrates não
serve. E o que vier depois de Sócrates também não servirá para nada.
Por isso começo a suspeitar que o problema não está no trapalhão
que foi Santana Lopes ou na farsa que é o Sócrates. O problema está
em nós. Nós como povo.
Nós como matéria-prima de um país. Porque pertenço a um país onde
a ESPERTEZA é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais o que o
euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais
apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito
aos demais.
Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão
ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos
passeios onde se paga por um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL,
DEIXANDO-SE OS DEMAIS ONDE ESTÃO.
Pertenço ao país onde as EMPRESAS PRIVADAS são fornecedoras
particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para
casa, como se fosse correcto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e
tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos... e
para eles mesmos.
Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque
conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se
frauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos.
Pertenço a um país onde a falta de pontualidade é um hábito. Onde
os directores das empresas não valorizam o capital humano. Onde há
pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e
depois reclamam do governo por não limpar os esgotos.
Onde pessoas se queixam que a luz e a água são serviços caros.
Onde não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem
que é muito chato ter que ler) e não há consciência nem memória
política, histórica nem económica. Onde os nossos políticos trabalham
dois dias por semana para aprovar projectos e leis que só servem
para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar a alguns.
Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações
médicas podem ser compradas, sem se fazer qualquer exame. Um país
onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma
criança nos braços, ou um inválido, fica em pé no autocarro,
enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não dar-
lhe o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro
e não para o peão. Um país onde fazemos muitas coisas erradas, mas
estamos sempre a criticar os nossos governantes. Quanto mais analiso
os defeitos de Santana Lopes e de Sócrates, melhor me sinto como
pessoa, apesar de que ainda ontem corrompi um guarda de trânsito
para não ser multado. Quanto mais digo o quanto o Cavaco é
culpado, melhor sou eu como português, apesar de que ainda hoje
pela manhã explorei um cliente que confiava em mim, o que me
ajudou a pagar algumas dívidas. Não. Não. Não. Já basta.
Como matéria-prima de um país, temos muitas coisas boas, mas falta
muito para sermos os homens e as mulheres que nosso país precisa.
Esses defeitos, essa CHICO-ESPERTERTICE PORTUGUESA congénita ,
essa desonestidade em pequena escala, que depois cresce e evolui até
converter-se em casos escandalosos na política, essa falta de
qualidade humana, mais do que Santana, Guterres, Cavaco ou
Sócrates, é que é real e honestamente ruim, porque todos eles são
portugueses como nós, ELEITOS POR NÓS. Nascidos aqui, não em
outra parte...
Fico triste. Porque, ainda que Sócrates fosse embora hoje mesmo, o
próximo que o suceder terá que continuar trabalhando com a mesma
matéria prima defeituosa que, como povo, somos nós mesmos. E não
poderá fazer nada... Não tenho nenhuma garantia de que alguém
possa fazer melhor, mas enquanto alguém não sinalizar um caminho
destinado a erradicar primeiro os vícios que temos como povo,
ninguém servirá. Nem serviu Santana, nem serviu Guterres, não
serviu Cavaco, e nem serve Sócrates, nem servirá o que vier. Qual é a
alternativa?
Precisamos de mais um ditador, para que nos faça cumprir a lei com
a força e por meio do terror? Aqui faz falta outra coisa.
E enquanto essa outra coisa não comece a surgir de baixo para cima,
ou de cima para baixo, ou do centro para os lados, ou como queiram,
seguiremos igualmente condenados, igualmente
estancados....igualmente abusados!
É muito bom ser português. Mas quando essa Portugalidade
autóctone começa a ser um empecilho às nossas possibilidades de
desenvolvimento como Nação, então tudo muda.
Não esperemos acender uma vela a todos os santos, a ver se nos mandam um Messias.
Nós temos que mudar. Um novo governante com os mesmos
portugueses nada poderá fazer. Está muito claro... Somos nós que
temos que mudar. Sim, creio que isto encaixa muito bem em tudo o
que anda a nos acontecer: desculpamos a mediocridade de programas
de televisão nefastos e francamente tolerantes com o fracasso. É a
indústria da desculpa e da estupidez. Agora, depois desta mensagem,
francamente decidi procurar o responsável, não para castigá-lo, senão
para exigir-lhe (sim, exigir-lhe) que melhore seu comportamento e
que não se faça de mouco, de desentendido. Sim, decidi procurar o
responsável e ESTOU SEGURO QUE O ENCONTRAREI QUANDO ME
OLHAR NO ESPELHO.
AÍ ESTÁ. NÃO PRECISO PROCURÁ-LO EM OUTRO LADO.
E você, o que pensa?.... MEDITE!
Eduardo Prado Coelho - In Público
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